Recuperação judicial, parte do quebra-cabeça
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A melhor aplicação da nova lei requer iniciativas proativas por parte do do Judiciário, bancos, fundos de investimento e empresas
Por Jorge Queiroz
A nova Lei de Recuperação introduziu inúmeros avanços em relação ao anacrônico diploma legal de 1945. Suas maiores contribuições incluem: a busca pela preservação de negócios viáveis e seus postos de trabalho; mais opções para o salvamento dos negócios viáveis, inclusive na falência, que prioriza a continuidade do negócio e sua venda como tal; a dissociação entre a sorte da célula social chamada empresa e a do empresário; celeridade; e ampla desprocessualização.
É de suprema importância entender que o novo ordenamento jurídico constitui o arcabouço jurídico, cujo objeto é dotar o processo de recuperação com os marcos regulatórios legais, que representa uma pequena parte do que pode ser um grande e complexo quebra-cabeça, como os primeiros casos empíricos comprovam. A natureza do salvamento de um negócio é econômico-administrativa, e não jurídica. Não é o novo diploma legal que está sendo colocado em prova com os primeiros casos, mas a atuação e competência da governança/administração das empresas, do judiciário e de seus stakeholders, dos quais depende verdadeiramente o êxito do processo, a quem cabe deliberar com responsabilidade, experiência e lucidez a solução mais adequada a cada situação. A recuperação judicial deve ser vista como exceção – nos EUA, a razão é de 1,6 milhão de falências para 12 mil recuperações judiciais por ano. Destarte, o Poder Judiciário e os credores deverão analisar criteriosamente cada caso para coibir abusos, medidas protelatórias e fraudes que geram grandes perdas de valor e tempo.
Os juízes têm um papel central no processo recuperatório – dependendo de sua atuação, negócios viáveis podem ser extintos, enquanto outros, inviáveis, podem enveredar em um processo procrastinatório infindável, com grande destruição de valor em ambos os casos. Aspectos a serem observados: a crise é mormente resultado de má gestão, por isso a maioria dos casos nos países desenvolvidos implica a pronta substituição do comando (sobretudo na existência de fraude), medida preponderante para o êxito da reabilitação, pois evita retardamentos e retrocessos, que geram perdas, insegurança e incerteza; viabilidade; celeridade e cumprimento dos prazos, pois o processo degenerativo acelera-se de forma avassaladora; a qualidade do plano – planos pífios, com baixo conteúdo e detalhe, geram incertezas e falta de apoio; e a eficácia/execução do plano, que deve contemplar ajustes na governança/administração, na estratégia e operações, e que esse “trabalho de casa” é uma das pré-condições da recuperação, sem o qual será difícil lograr a reestruturação de balanço e a atração de novos recursos para fomentar a atividade principal da empresa.
A seqüência do plano, conhecida como by the book, é: 1) nova gestão, plano, viabilidade, valuation e ajustes no negócio e na operação; 2) apoio dos fornecedores com retomada de prazos de pagamento e possíveis conversões de dívida; 3) apoio dos credores, com créditos emergenciais e possíveis conversões; 4) apoio dos funcionários; 5) busca de recursos junto a novos players. Dificilmente, os passos 2, 3 e 4 ocorrerão sem o primeiro, da mesma sorte que o quinto não será concretizado sem os anteriores.
Não é o novo diploma legal que está sendo posto a prova, mas a governança de empresas, do judiciário
A lógica é simples. Se quem está no risco empresa não confia na sua governança/gestão, no sucesso do plano, quem está fora não terá a menor motivação para tal, nem mesmo com a mais bem concebida estrutura de captação ou de fundos de investimento. Os casos iniciais mostram outros aspectos críticos para o êxito do processo: a consciência do Juízo quanto à correta escolha do administrador judicial, com as qualificações e experiência exigidas – que sua função precípua é bem mais abrangente que a do comissário e síndico na antiga lei, mormente considerando que atua dentro da empresa e necessita ampla vivência em gestão, finanças, controle e operações em situações de crise; a atenção a eventuais fraudes e crimes financeiros.
O gigantesco e bem-sucedido, recém concluído, processo de recuperação judicial da United, é um exemplo. Em 2002 possuía US$ 24 bilhões e US$ 23 bilhões em ativos e passivos, respectivamente, e teve rejeitado seu pedido de apoio governamental. Em três anos, com uma nova, experiente e eficaz gestão, com alta credibilidade, um bem concebido e executado plano, trabalhos de valuation e transparência total, reduziu US$ 7 bilhões/ano em custos, US$ 8 bilhões na dívida e o quadro de pessoal em 20 mil funcionários (68 mil em 2001), adequou sua frota e reduziu a mesma em cem aeronaves. Obteve US$ 3 bilhões em novos recursos. Teve o apoio dos credores, mercado de distressed investors e fornecedores através de créditos extraconcursais desde o princípio de sua reabilitação. Seguiu rigidamente a lógica e seqüência tradicional (by the book). O caso Varig é o maior da história nacional. Os problemas que assolaram a Varig e United são similares, sem embargo as abordagens são díspares. A reestruturação da Varig iniciou na década passada, suas dificuldades agravaram-se nos últimos quatro anos até o ponto em que suas linhas de crédito foram sustadas e seus fornecedores impuseram-lhe condições mais dramáticas, ficando a empresa exposta a uma crise sem precedentes. Sua adesão à seqüência tradicional (by the book), propiciará melhores resultados.
As perspectivas para a preservação dos negócios viáveis são favoráveis, condicionadas à: maior consciência preventiva; correção de rumo nos primeiros sinais de alerta; envolvimento preventivo dos credores; atuação do Judiciário – varas especializadas, intercâmbio, treinamento contínuo; envolvimento de especialista em recuperação; mercado secundário de dívida; fundos de investimentos especializados; legislação sobre recuperação em múltiplas jurisdições.
O processo de aperfeiçoamento da aplicação da nova lei requer iniciativas proativas por parte do Judiciário, bancos, fundos de investimento e empresas, o que sem dúvida contribuirá para o desenvolvimento econômico e o bem estar social, atraindo novos investimentos e reduzindo o risco financeiro e o spread bancário.
Jorge Queiroz é especialista em Recuperações de Difícil Solução, presidente do Instituto Brasileiro de Gestão e Turnaround, representante junto à Insol International e membro do American Bakruptcy Institute