Receita dificulta acesso a informações fiscais
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Por Ludmila Santos
Após uma manobra do Senado, a Medida Provisória 507/2010 — que, com o intuito de garantir o sigilo fiscal, obrigou advogados a portar procuração pública elaborada por cartório para representar o contribuinte junto à Receita — perdeu sua eficácia na quarta-feira (16/3). Senadores governistas e de oposição entraram num acordo, deixando vencer o prazo para que a matéria fosse votada, para que o texto original da MPfosse resgatado e apresentado novamente ao Congresso.Porém, como projeto de lei.
Com a medida, será retomado o artigo 5º da MP, justamente aquele que tratava da exigência de procuração pública para os advogados. Odispositivo havia sido derrubado pela Câmara dos Deputados no início do mês, quando a casa votou a MP, após muita pressãode entidades que representamcontabilistas,fiscais daReceita e defensores. Amedida foi uma resposta rápida do governo para o escândalo de vazamento de dados fiscais de membros do PSDB em plena campanha eleitoral, no ano passado.
Tributaristas ouvidos pela ConJur afirmaram que a possibilidade do dispositivo voltar a valer não assusta, pois as chances do tema ser discutido de maneira mais criteriosa são maiores agora. Mesmo assim, a Diretoria Executiva Nacional do Sindifisco saiu na frente e já está se preparando para acompanhar o trâmite do projeto de lei para garantir a segurança funcional dos auditores fiscais, uma vez que a proposta prevê sanções mais duras para os servidores.
A questão é que antes mesmo da publicação da MP 507, os advogados já encontravam dificuldades para representar o contribuinte junto à Receita. Há casos em que é preciso recorrer à Justiça para que o defensor tenha acesso aos procedimentos administrativos abertos, uma vez que os prazos são curtos. O próprio contribuinte que quiser acessar suas informações vai enfrentar uma série de obstáculos.
O professor de Direito Tributário da Universidade de São Paulo, Heleno Taveira Torres, afirmou que a MP 507 atendia uma urgência daquele momento. No entanto, ele avalia que a questão de acesso de dados merece um debate mais denso e qualificado, com representantes dos contribuintes e da Fazenda apresentando suas razões. “Não há muito sentido em editar MP em matéria de administração tributária”.
Parao advogado tributarista Rodrigo Marques, do escritório Marques & Associados, a tendência é que o Fisco crie cada vez mais dificuldades. “Os prazos são curtos, os procedimentos para acesso de dados são complicados, os fiscais também não são acessíveis ejuntar provas é cada vez mais demorado. A impressão que se tem é que, ao contrário do Direito Criminal, em que o Estado tem de provar que a pessoa é criminosa, nos processos que correm junto à Receita é o contribuinte que tem de provar sua inocência”.
Quando se trata de um pedido de informação, há a possibilidade do contribuinte pedir prorrogação de prazo, porém, nos casos de autuação, não há flexibilidade. “Os pedidos de informação, tanto para pessoa física quanto jurídica, são muito genéricos, é preciso consultar a Receita para saber do que se trata, mas ela só atende com hora marcada. Muitas vezes se leva semanas para que o atendimento seja agendado, por meio da internet. Já cheguei ao ponto de fazer um boletim de ocorrência, pois meu prazo iria vencer”, afirmou Marques. Outro entrave é que, no dia do atendimento, o contribuinte só pode ter vista dos autos. Para ter cópias, é preciso pagar.
Quando as dificuldades de se obter informações aumentam e os prazos diminuem, a única saída é entrar com um Mandado de Segurança. “Ou seja, o objetivo de se solucionar com mais rapidez um problema pela via administrativa e não saturar ainda mais a Justiça se perde”, destacou Marques.
Um dos casos mais conhecidos é o do vice-presidente do PSDB, Eduardo Jorge, que recorreu à via judicial para ter acesso ao processo administrativo que apurava a quebra de seu sigilo fiscal. Em agosto de 2010, a Justiça Federal determinou que a Corregedoria da Receitadesse acesso aos dados.
O tributarista Jorge Henrique Zaninetti, do escritório TozziniFreire Advogados, também já teve de impetrar Mandado de Segurança para resguardar o direito de apresentação de informação a um contribuinte. Isso porque, quando há uma fiscalização, os prazos são extremamente exíguos e levantar centenas de notas fiscais e de documentos de um dia para a noite não é fácil. “Porém, quando há a situação inversa, ou seja, o contribuinte depende de informações junto à Receita, maso agente público não está por norma sujeito a nenhum tipo de prazo, a não ser pelo princípio da atuação administrativa, o contribuinte fica refém”, observou.
Por conta das dificuldades, muitas vezes o contribuinte pessoa física, que sempre avalia a questão do custo-benefício, desiste do processo. “Quando se avalia que será preciso contratar advogados para cuidar de um caso longo e que muitas vezes ele precisará ir e vir há diversos departamentos, a decisão tomada é no sentido de pagar o que o Fisco pede sem questionamentos".
Ele citou que, em um dos casosque atuou, a Receita fez o arbitramento de lucro por entender que havia inconsistência nos arquivos magnéticos. Mas, no caso, o erro não foi do contribuinte, mas sim dos programas utilizados pela Receita. “Não havia inconsistência entre a DCTF [Declaração de Contribuições e Tributos Federais] e os arquivos magnéticos. Levei 2,5 anos, tendo inclusive de ir à Brasília parafazer sustentação perante ao Carf, para explicar que o que acontecia é que um programa da Receita despreza os zeros à esquerda e o outro não, logo, as informações cruzadas não batiam”.
Heleno Torrestambém citou que ainda é necessário entrar com Mandado de Segurança para que o contribuinte consiga certidões junto à Receita. “Há um acréscimo de processos judiciais quando a própria Receita poderia proporcionar uma rápida solução ao contribuinte. Ao que parece, quanto mais complexas as empresas, mas escassae difícil é a divulgaçãodos dados”.
Gargalos de defesa
Ter o processo administrativo que deu origem à execução é fundamental para que o advogado proceda com a defesa, já que na ação judicial só há a inscrição de dívida ativa. Por isso, ao dificultar o acesso às informações, a Receita viola a Constituição nos artigos 5º, inciso LV, e 37, por negar o direito ao devido processo legal aos contribuintes. Há também violação ao princípio da verdade material, que diz queoFisco deve ter interesse em ouvir todos os argumentos do contribuinte para não cobrar o que é injusto.
Marques avaliou que há prejuízos mesmo quando oconflito já saiu da via administrativa e corre na via judicial e que, a apesar da maioria dos processos se tratar de problemas ocasionados pelo contribuinte, também há casos em que as autuações e execuções são decorrentes de falhas do Fisco. O tributarista citou o caso de um clienteque recebeu um oficial para penhorar todos os seus carros. Isso porque o nome dele foi incluído por erro no processo que motivou a penhora. Ele nunca foi sócio da empresa que devia.
Além disso, a interpretação dada pelo fiscal sobre o caso aliada aos prazos para a defesa não facilitam. Em um dos casos em que atuou, Marques contou que a Receita desconsiderou um mútuo feito entre duas empresas, cobrando imposto de renda. “A empresa que recebeu o empréstimo nomeou um fiador. No vencimento da transação, o avalista é que efetivamente pagou o empréstimo, porém, o Fisco entendeu que a empresa que pegou dinheiro emprestado recebeu o dinheiro como renda da outra que serviu de avalista”.
Ele teve de providenciar a microfilmagem das transferências bancárias para poder provar que houve o mútuo. “Esse caso levou sete anos para ser finalizado. Cada dia mais, a prova é difícil de ser providenciada, pois a Receita não considera mais contratos, dizendo que tem de haver a prova financeira da transição”.
Problemas técnicos
A administração pública tem investido na ampliação da informatização. Em tese, o uso da tecnologia dá mais transparência ao trabalho do poder público e torna a vida do cidadão mais fácil, na medida em que auxilia na busca de serviços, documentos e informações. No entanto, as ações da Receita Federal estão na contramão da prestação de serviços públicos.
Zaninetti considerou que medidas como a obrigatoriedade da procuração dificultam e burocratizam o trabalho do advogado. “Uma coisa é proteger as informações fiscais, sobretudo em relação a disputas eleitorais e divulgação de patrimônio. Outra é dificultar o exercício da representação do advogado, criando obstáculos. Essa foi uma medida que correu na contramão das evoluções que o Judiciário tem apresentado”.
Ele observou que há um antagonismo entre as duas maneiras de se solucionar um conflito com o Fisco. Enquanto na via judicial há uma série de procedimentos que facilitam o trâmite do processo, na via administrativa acontece o contrário, numa tentativa de forçar o contribuinte a desistir de brigar por um direito e a pagar o que a Receita determina.
“É um retrocesso, custoso, demorado e burocrático. Não obstante a evolução da informática, das bases de dados, da comunicação, o que percebemos é que era mais fácil se obter informações no tempo em que os processos ainda corriam apenas por meio do papel”.
O tributarista Rodrigo Marques acrescentou que os sistemas informatizados de departamentos e autarquias do governo, que, em tese, deveriam agilizar o atendimento, criam uma série de dificuldades. “O sistema do INSS é muito lento, por isso, não é difícil acontecer dos extratos não apresentarem pagamentos feitos por meio da Super Receita. Ou seja, mesmo o contribuinte apresentando em juízo as guias de pagamento, o governo diz que você não pagou. Daíé precisooficiar o bancopara comprovar as autenticações mecânicas”.
A departamentalização -prática de agrupar as atividadesem unidades organizacionais – da Receita é outro entrave, segundo Zaninetti. Com a informatização do governo, o natural seria que as informações pudessem ser acessadasde qualquer departamento ou regional. “Tanto a regional da Luz quanto a daLapaacessam a mesma base de dados”.
Direitos fundamentais
Para oprofessor Heleno Torres, é compreensível que a Receita adote sigilo em algumas investigações em curso, para proteger os dados de terceiros. Porém, é dever da administração tributária manter a divulgação das informações ao contribuinte. “Não há mais justificativas para restrições ao acesso de informações. Cabe à administração agir com cautela, buscar dispositivos de segurança, mas sem impedir ou fazer exigências excessivas, com custos que onerem o contribuinte e que criem burocracia desnecessária”.
Ocontribuinte, por falhas do sistema, acaba sendo tolhido de ter acesso aos próprios autos. “A Receita investiu muito em tecnologia para atender as demandas e garantir os direitos fundamentais do contribuinte. Mas também há situações em que o Fisco não possui as informações solicitadas, por exemplo, os créditos de PIS e Cofins".
Heleno também afirmou que, em determinadas regiões e períodos do ano, ainda há contribuintes que pegam senhaspara serem atendidos, à espera de um carimbo da Receita, procedimentos que poderiam ser feito por meio de assinatura eletrônica. “Tratar bem o contribuinte é um dever do Estado, é quertão de moralidade administrativa”. A equipe da ConJur entrou em contato com assessoria de imprensa da Receita Federal. Porém, até a finalização da reportagem, assessoria não retornou a ligação.