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O Supremo e a Lei das Organizações Sociais

Publicado em:

Rubens Naves

A existência de um ambiente legal mais claro, simples e estável tem sido, há muito, reclamada como uma das condições para o crescimento e desenvolvimento econômico do país. Esta reflexão vem à tona por ocasião do voto recentemente proferido pelo ministro Eros Grau, do Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento, ainda inconcluso, de uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin) proposta há mais de oito anos pelo PT e pelo PDT contra a Lei das Organizações Sociais – a Lei nº 9.637, de 1998.
Como se sabe, a Lei nº 9.637 possibilitou que entidades sem fins lucrativos que tenham objetivos de natureza social voltados ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde sejam qualificadas como “organizações sociais”, tornando-se aptas a celebrar com o Estado contratos de gestão para o fomento e a execução de atividades naquelas áreas. Inaugurou-se, assim, um novo paradigma para a prestação de serviços públicos, mais transparente, democrático e altamente focado na eficiência do atendimento prestado aos cidadãos.
Este novo e promissor paradigma encontra-se, porém, sob ameaça caso prevaleça no Supremo a posição defendida pelo ministro Eros Grau. Isto porque, afastando-se dos votos proferidos pelos ministros que o antecederam, entendeu o magistrado que a Lei nº 9.637 conteria dispositivos incompatíveis com a Constituição Federal, votando pela sua suspensão. E isto por duas principais razões.
Em primeiro lugar, alegou o ministro que a Lei nº 9.637 instrumenta a redução do tamanho do Estado, na redefinição do seu papel”, transferindo indevidamente para a sociedade civil – que o magistrado estranhamente equipara a “mercado” – atribuições que a Constituição Federal impôs ao Estado.
Ocorre que a lei, em nenhum momento, opera tal transferência de responsabilidades. Os serviços públicos continuam sob a alçada do Estado e em nome deste são disponibilizados aos cidadãos, com todas as notas características do regime de direito público (continuidade, igualdade, universalidade etc.). A celebração do contrato de gestão permite, tão somente, o compartilhamento de algumas atividades com organizações sociais – entidades sem fins lucrativos de interesse público e não “agentes econômicos privados”, como supõe o ministro -, vinculando a prestação de serviços públicos não mais à observância de exigências meramente burocráticas mas, sim, à realização de metas pré-estabelecidas e monitoradas pelo próprio Estado e por toda a sociedade.


As exigências feitas às organizações sociais não permitem colocá-las no mesmo plano das demais entidades privadas


O cerne do voto do ministro, contudo, está fundado em um raciocínio adicional: o de que o contrato de gestão habilitaria organizações sociais a desfrutarem de “favores desmedidos” do poder público, “visto que esta contratação não é antecedida de licitação”. Ainda que assim não fosse, lembre-se que a Constituição permite, em seu artigo 37, inciso XXI, que a lei crie exceções à regra de licitação para as contratações do poder público. Profundo conhecedor do texto constitucional, o ministro Eros Grau fez referência a esta disposição em seu voto. No entanto, advertiu o magistrado que, para ser válida, a exceção instituída por lei há de ser compatível com o princípio da igualdade, justificando-se o tratamento desigual apenas diante de situações e pessoas postas em planos igualmente desiguais – o que, segundo ele, não seria o caso das organizações sociais em relação à pluralidade de atores com os quais o Estado se relaciona.
O ministro parece, portanto, ter desconsiderado uma série de peculiaridades das organizações sociais, tal como disciplinadas na Lei nº 9.637, que não apenas justificam como demandam um tratamento diferenciado. A principal delas refere-se à circunstância de que, embora trate-se de uma pessoa jurídica de direito privado (associação ou fundação) sem fins lucrativos, seus membros não detêm o controle da entidade – e, portanto, estão impossibilitados de desvirtuá-la de suas finalidades de interesse público -, eis que mais de 50% dos integrantes do conselho de administração devem corresponder a representantes do próprio poder público e de outras entidades da sociedade civil.
Mais ainda: diferentemente do que ocorre com as associações e fundações em geral, as organizações sociais são obrigadas a publicar anualmente, no Diário Oficial da União, seus relatórios financeiros e de execução do contrato de gestão. Especificamente em relação ao contrato de gestão, registre-se ainda que a entidade fica adstrita às metas e prazos de execução ali estabelecidos, bem como aos limites e critérios para a remuneração de seus dirigentes e empregados, sendo obrigada a tornar público um regulamento para a contratação de obras, serviços e compras. Tudo sem prejuízo do monitoramento periódico por uma comissão de avaliação externa, composta por especialistas de notória capacidade e adequada qualificação.
A nosso ver, estas exigências – que acentuam o caráter público, embora não-estatal, das organizações sociais – não permitem colocá-las no mesmo plano das demais entidades privadas, especialmente no que se refere a normas de contratação com o poder público. De mais a mais, mesmo que se entendesse indispensável a realização de licitações para a celebração de contratos de gestão, isto não poderia ser utilizado como excusa para sugerir, como o fez o ministro Eros Grau, a invalidade da Lei nº 9.637. Bastaria, nesta hipótese, declarar a inconstitucionalidade do inciso XXIV do artigo 24 da Lei nº 8.666, de 1993, com a redação que lhe foi conferida pela Lei nº 9.648.
A edição da Lei das Organizações Sociais em 1998 abriu um novo horizonte para a modernização do Estado brasileiro, ofertando-lhe instrumentos adicionais para a efetiva realização de seus objetivos constitucionais. Quase dez anos se passaram desde então. Qual o futuro desta inovação? Com a palavra, o Supremo.
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