Lula pode vetar emenda que trata de PJ
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O presidente Luiz Inácio Lula da Silva deve vetar dispositivo que proíbe os fiscais da Receita Federal de autuar prestadores de serviço contratados como pessoas jurídicas. O dispositivo, previsto na emenda 3 do projeto de lei que criou a Super Receita, foi aprovado por ampla maioria no Senado e na Câmara dos Deputados, com o apoio de dezenas de entidades empresariais. O veto está sendo recomendado pelos ministros da Fazenda, Guido Mantega, e do Trabalho, Luiz Marinho.
Apesar da possibilidade de veto, o governo já estuda a idéia de criar um regime especial de tributação para as empresas prestadoras de serviços, constituídas, por exemplo, por apenas uma pessoa física. A hipótese, segundo assessores da Fazenda, foi admitida pelo secretário da Receita Federal, Jorge Rachid, que, ainda assim, recomendou o veto à emenda 3.
Ontem, um ministro próximo do presidente informou que Lula deverá vetar a emenda, embora não tenha tomado ainda uma decisão. Esse mesmo ministro aventou a possibilidade de o governo encontrar uma solução para os prestadores de serviços intelectuais, científicos, artísticos ou culturais, que, em caráter “personalíssimo” (jogadores de futebol, artistas etc.), estariam atuando como pessoas jurídicas.
Desde 1995, fiscais da Receita Federal têm autuado esses prestadores de serviço – conhecidos como PJ (pessoa jurídica) – com a alegação de que eles, na verdade, são pessoas físicas disfarçadas de jurídicas e que fazem isso para pagar menos imposto e não contribuir para a previdência social, bem como seus contratantes. Para multar as PJs, os fiscais estão lançando mão da prática da “desconsideração”, ou seja, a reclassificação de pessoa jurídica para pessoa física (assalariado).
A emenda 3, proposta originalmente pelo ex-senador Ney Suassuna ao projeto da Super Receita, estabelece que apenas um juiz pode autorizar um fiscal a promover essa reclassificação (“desconsideração”). A emenda reafirma, segundo advogados e juristas contratados por entidades empresariais, o artigo 114 da Constituição, segundo o qual, cabe apenas à Justiça do Trabalho decidir sobre a legalidade da prestação de serviço de pessoas físicas a empresas, na condição de pessoas jurídicas.
“O fiscal não pode desconsiderar a PJ, salvo com autorização judicial. A desconsideração é um evento dentro do processo de fiscalização”, diz o ex-secretário da Receita Federal Everardo Maciel. “Mesmo um juiz, para desconsiderar a PJ, só o faz com o pedido de uma das partes”, sustenta Luiz Carlos Robortella, advogado trabalhista e professor da Faculdade de Direito da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP-SP). “Se as partes não postulam a nulidade dos contratos, como é que os fiscais podem fazer isso?”, indaga Robortella.
Everardo baseia seu argumento num fato curioso: foi ele quem, há sete anos, propôs a possibilidade da prática de “desconsideração”. Ocorre que a legislação aprovada nunca foi regulamentada. Além disso, já há contestação legal ao dispositivo.
Em 2000, quando comandava a Receita Federal, Everardo elaborou proposta de lei complementar, que autorizava o Fisco a adotar práticas de “desconsideração” de contribuintes. A medida só entraria em vigor, contudo, depois que o governo aprovasse uma outra lei, esta de caráter ordinário, estabelecendo os procedimentos que os fiscais deveriam seguir antes de reclassificar um contribuinte.
O projeto de lei complementar foi aprovado pelo Congresso, mas sofreu, imediatamente, contestação no Supremo Tribunal Federal (STF), por meio de ação direta de inconstitucionalidade (Adin) movida por entidades de classe. A Adin ainda não foi julgada. Ainda na gestão Fernando Henrique Cardoso, o governo tentou, por intermédio de sete artigos da medida provisória 66, estabelecer procedimentos para balizar a prática de desconsideração pelo Fisco.
Ao converter a MP 66, o Congresso rejeitou justamente os artigos de 13 a 19, que estabeleciam esses procedimentos. “Inexiste, portanto, lei que institua o procedimento administrativo a ser seguido pelo Fisco para a adoção de práticas desconsiderativas, o que implica que a Lei Complementar 104 permanece sem eficácia”, alega o ex-secretário da Receita Federal.
Quando sancionou, em 2005, a Lei 11.196, o presidente Lula reconheceu, na prática, a legitimidade da contratação de prestadores de serviços por uma pessoa jurídica, “mesmo que esta prestação”, diz o presidente da seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Luiz Flávio DUrso, “seja de natureza personalíssima, o que não é em nada incompatível com a atividade empresarial”. O preceito apontado por DUrso está no artigo 129 da Lei 11.196.
“Não há proibição, portanto, para a constituição de pessoa jurídica”, insiste Everardo, acrescentando que o dispositivo da Lei 11.196 estabelece justamente as regras sobre serviços intelectuais. “A Receita acha que pode desconsiderar, mas não pode”, diz o ex-secretário, acrescentando que a ação dos fiscais não tem efeito arrecadatório.
Os representantes das centrais sindicais alegam que a emenda 3 contribui para a “precarização” das condições de trabalho. Os trabalhadores contratados como pessoas jurídicas, alegam eles, não têm os mesmos direitos legais assegurados aos assalariados com carteira assinada. “O fenômeno da terceirização é incontrolável. Com esse componente da fiscalização, inviabiliza-se a terceirização”, protesta o professor Luiz Carlos Robortella.
Procurados ontem pelo Valor, o secretário da Receita Federal, Jorge Rachid, e o presidente da Unafisco (sindicato dos fiscais da Receita), Carlos Nogueira, não retornaram as ligações até o fechamento desta edição.