A Resolução nº 33 do Senado e a dívida ativa
Publicado em:
Luiz Felizardo Barroso
Muito se tem escrito e publicado sobre a Resolução nº 33, de 2006, do Senado Federal, que inaugurou no Brasil a terceirização da cobrança de valores inscritos em dívida ativa de Estados, do Distrito Federal e dos municípios, dado o caráter pioneiro e desassombrado com que aborda o assunto. Como se trataria, em princípio, de um serviço público, só aos procuradores das respectivas Fazendas Nacional, estadual e municipal caberia a representação na cobrança de créditos de qualquer natureza inscritos em dívida pública.
O óbice existente seria de natureza constitucional, pois a Constituição Federal é enfática neste sentido, eis que a interpretação de seu artigo 131, parágrafo 3º seria extensível à advocacia pública das entidades de natureza estatal, havendo, no entanto, uma saída para as dívidas públicas de natureza não tributária, que poderiam, perfeitamente, ser objeto de delegação e até mesmo de comercialização de recebíveis.
É notória a falta de uma estrutura de cobrança, principalmente nos municípios brasileiros que amargam a impossibilidade de carrear para os seus cofres cerca de R$ 60 bilhões de sua dívida ativa. Esta notória e permanente falta de exação na gestão, à saciedade, da coisa pública tem levado vários países à terceirização dos seus serviços públicos. No Japão, por exemplo, praticamente todos os serviços públicos do governo poderão ser oferecidos à iniciativa privada em regime de concorrência, na maior reestruturação do setor público da história do país. Uma recente lei japonesa, em vigor desde julho deste ano, permite que os serviços públicos sejam testados pelo mercado para que se avalie se poderiam ser melhor administrados em mãos de pessoas de direito privado. Dentre estes serviços aparecem as agências particulares de cobrança de contas, que poderiam passar a cuidar das aposentadorias locais, por exemplo, certamente proporcionando uma maior regularidade na arrecadação das respectivas contribuições mensais instituídas para este fim específico.
Em verdade, o artigo 131, parágrafo 1ª da Constituição Federal confere à Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) o privilégio de representação da União, mas só para a execução da dívida ativa, vale dizer, só para a sua representação em juízo. Só que, quando o volume físico das dívidas a serem cobradas chega a um montante bastante elevado (como, aliás, acontece com a dívida pública, inclusive a de natureza tributária), antes de pensarem em um ajuizamento, os agentes financeiros tentam receber o máximo amigavelmente, acionando os devedores e persuadindo-os, particularmente, a liquidarem seus débitos pela via amigável.
Esta atuação extrajudicial, a ser exercida por particulares, poderia ter lugar mesmo tratando-se de dívida ativa de natureza tributária? Penso que isso é o que estará acontecendo com as instituições financeiras, a partir da novel resolução do Senado, isto é, estarão promovendo, tão somente, a cobrança amigável da dívida ativa de natureza tributária direta ou indiretamente, através de suas assessorias de cobrança, sem, ao menos, cogitarem de ajuizar nenhum procedimento judicial a respeito, em face do contribuinte inadimplente.
Não se alegue que, se adotada a Resolução nº 33 do Senado, haveria a quebra do sigilo fiscal, podendo os bancos utilizar o cadastro dos inadimplentes para a análise na troca de concessão de crédito. Seria um verdadeiro “Big Brother” contra o contribuinte, como afirmou o presidente da Associação Nacional dos Procuradores do Estado (Anape).
No Japão praticamente todos os serviços públicos podem ser oferecidos à iniciativa privada em regime de concorrência
Neste particular, muito mais devastadores têm sido os efeitos da penhora on line, quando se sabe que o magistrado, via Banco Central (Bacen), possui licença para entrar nas contas bancárias das empresas, congelando o seu saldo positivo, mediante o bloqueio eletrônico de tantas contas quantas as empresa tiverem, paralisando-as pelo perverso garrote financeiro a que são submetidas.
Embora constitua-se em uma quebra de paradigma – como o do princípio da indisponibilidade do interesse público – a solução que ora se está propondo não está eivada de inconstitucionalidade, tendo, ao contrário, um fim eminentemente nobre, qual seja o de viabilizar o enchimento dos cofres públicos com o que já lhes pertence, estando, este apenas, indevida e temporariamente nas mãos do contribuinte inadimplente.
A solução alvitrada, ademais, atende a uma nova perspectiva do Estado moderno, qual seja a de se socorrer de soluções e de entidades privadas que o auxiliem a cumprir fielmente seu papel constitucional, como já o faz, a propósito, com as parcerias público-privadas (PPP) e com a própria franquia pública, como a da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (EBCT).
O endosso mandato que talvez se tornasse necessário para que os bancos e as firmas de cobrança pudessem exercer essa sua atividade de retomada dos respectivos ativos financeiros em prol dos cofres públicos, como é notório, não transfere a propriedade dos respectivos créditos. O que é vedado constitucionalmente é a representação em juízo dos entes públicos por quem não seja procurador concursado de algumas das Fazendas públicas antes mencionadas. E a Resolução nº 33 do Senado não fala, em nenhum momento, nesta hipótese, e nem tampouco os bancos e/ou as firmas de cobrança estão querendo cobrar em juízo o crédito que lhes terá sido repassado, senão, tão somente, proceder a uma cobrança amigável, como, aliás, já faziam os contenciosos amigáveis do serviço público, só que de modo ineficiente, mesmo porque este não era seu “core business”, hipótese em que a palavra de ordem, “tien toi on ton sujet”, ressona a céu aberto.