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Nota Fiscal Inidônea e o Crédito de ICMS

Publicado em:

Walmir Luiz Becker
Advogado em Porto Alegre, Membro do Instituto de Estudos Tributários – IET Membro do Conselho Editorial da Revista de Estudos Tributários – RET Sócio de Teixeira, Ribeiro, Becker Advogados.

Os Estados, via de regra, vedam o aproveitamento de crédito de ICMS destacado em nota fiscal inidônea, assim considerada, dentre outras hipóteses explicitadas nas respectivas legislações tributárias, a que não preencha todos os requisitos regulamentares, contenha declarações inexatas, ou que foi emitida após a baixa ou cancelamento da inscrição estadual de seu emitente. Essa restrição ao crédito oriundo de nota fiscal definida como inidônea pela legislação estadual foi endossada pela Lei Complementar nº 87/96, que dispõe:

"Art. 23 – O direito de crédito, para efeito de compensação com débito do imposto, reconhecido ao estabelecimento que tenha recebido as mercadorias ou para o qual tenham sido prestados os serviços, está condicionado à idoneidade da documentação e, se for o caso, à escrituração nos prazos e condições estabelecidos na legislação."

Todavia, embora com o beneplácito de disposição de lei complementar federal, nos parece que as normas estaduais de vedação ao crédito fiscal de ICMS, sob o pretexto de falta de idoneidade ao documento fiscal que o legitimaria, não podem ser interpretadas e aplicadas em sua literalidade, sendo mister situá-las, para melhor exame, dentro do contexto do ordenamento jurídico-tributário a que pertencem, como parte de um todo.

Como é sabido, os mandamentos contidos em disposições tributárias infraconstitucionais, legais ou regulamentares, têm que estar conformados às normas e princípios constitucionais estabelecidos pelo Sistema Constitucional Tributário, sobre os quais não podem prevalecer, devendo ceder-lhes espaço sempre que se verificar dissintonia entre eles e a Constituição Federal.

Ressalvados os casos de conluio ou fraude entre emitente e destinatário, ou de irregularidades que este último pudesse desde logo perceber na nota fiscal por ele recebida, a proibição de utilização do crédito fiscal de ICMS fere o princípio constitucional da não-cumulatividade do tributo, inscrito no art. 155, § 2º, I, da Constituição Federal, que assegura a compensação do ICMS devido em cada operação com o montante do mesmo imposto cobrado nas operações anteriores.

Com efeito, tratando-se de imposto não-cumulativo, cada aquisição de mercadoria sujeita à incidência do ICMS gera, para seu adquirente, contribuinte desse tributo, crédito fiscal correspondente ao valor do imposto destacado na nota fiscal emitida pelo vendedor. Não tem influência, para o pleno exercício desse direito creditório, irregularidades praticadas pelo emissor desse documento fiscal, se com estas não foi conivente o destinatário da mercadoria que ingressou em seu estabelecimento guarnecida por nota fiscal inidônea.

E isto porque, em situações como esta, há que ser observado o princípio da boa-fé. Não podem ter eficácia contra terceiros de boa-fé atos jurídicos, como os atinentes à emissão de documentos fiscais, em cuja consecução esses terceiros, por serem pessoas estranhas a tais atos, não têm como intervir. Falta, ao terceiro, poder de polícia para tanto, que é concedido apenas à Administração Tributária, porquanto esta é que detém competência para fiscalizar todos os contribuintes.

Portanto, proibir a fruição de crédito de ICMS, na hipótese de nota fiscal inidônea, quando esta, em seu aspecto, em sua aparência, nada tinha de irregular, é responsabilizar terceiro por obrigação tributária acessória que não lhe cumpria. Bem se sabe que operações de compra e venda de mercadorias entre estabelecimentos industriais ou comerciais são normalmente realizadas dentro daquele clima de confiança mútua que rege o fechamento de negócios mercantis. Como exigir-se, então, que o estabelecimento adquirente de mercadoria perscrute, previamente, se é regular a inscrição cadastral do vendedor, ou se são exatas e fidedignas as declarações contidas na nota fiscal por este emitida?

De modo que, se a nota fiscal contiver todos os elementos e caracteres legalmente exigidos para sua impressão e emissão, o ICMS nela destacado é passível de apropriação pelo contribuinte destinatário, salvo se este tiver compactuado com alguma fraude subjacente.

Verdade que somente a aparência de regularidade do documento fiscal não seria suficiente para consubstanciar o crédito de ICMS. A legitimidade desse crédito de modo algum está aqui sendo defendida apenas com suporte na aparência formal e extrínseca da nota fiscal. O crédito de ICMS escriturado e compensado pelo contribuinte adquirente de mercadoria, por força da sistemática da não-cumulatividade desse imposto, é legítimo na exata medida em que corresponder, efetivamente, a operações de entrada de mercadorias no estabelecimento industrial ou comercial.

Em caso de questionamento do crédito pelo Fisco, em face de nota fiscal que este venha a declarar inidônea, a materialidade das operações de compra de mercadorias há de ser comprovada. Essa comprovação se faz pelo registro contábil dos valores das compras na escrituração mercantil do contribuinte, tanto os referentes aos movimentos das aquisições quanto aos dos respectivos pagamentos.

Assim, uma vez comprovado que a nota fiscal inquinada de inidônea deu entrada física e efetiva de mercadorias no estabelecimento do contribuinte, tem-se como induvidosamente caracterizada a sua boa-fé, razão suficiente para conferir-se plena legitimidade aos créditos de ICMS aproveitados. Diante dessa comprovação, e se, por sua aparência formal, nenhum vício puder ser detectado na nota fiscal, devem ser deixadas de lado as normas infraconstitucionais que vedam a utilização do crédito, sejam estas legais ou regulamentares, havendo de prevalecer sobre elas o princípio constitucional da não-cumulatividade, inserto no art. 155, § 2º, I, da Constituição Federal.

Nessa perspectiva, na falta, no âmbito da legislação estadual, de norma infraconsticional expressa a esse respeito, pode ser invocada a aplicação analógica do disposto no art. 82, e seu parágrafo único, da Lei Federal nº 9.430/96, in verbis:

Art. 82. Além das demais hipóteses de inidoneidade de documentos previstos na legislação, não produzirá efeitos tributários em favor de terceiros interessados, o documento emitido por essa pessoa jurídica cuja inscrição no Cadastro Geral de Contribuintes tenha sido considerada ou declarada inapta.

Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica aos casos em que o adquirente de bens, direitos e mercadorias ou o tomador de serviços comprovarem a efetivação do pagamento do preço respectivo e o recebimento dos bens, direitos e mercadorias ou utilização dos serviços.

Tal preceito da legislação federal, como se vê, confere respaldo de regra jurídica positiva aos nossos argumentos, indo ao encontro, ademais, da doutrina abalizada de José Eduardo Soares de Melo. Esse respeitado jurisconsulto, no seu livro "ICMS Teoria e Prática", já em sua 9.ª edição (Dialética, SP, 2006, p. 244), tece os seguintes comentários a propósito da questão em análise:

"A existência de negócio jurídico (aquisição de mercadorias e prestações de serviços de transporte e de comunicações) é fundamental para o gozo dos créditos do ICMS.

Tratando-se de operações e prestações realizadas e comprovadas pelo contribuinte, que estejam inseridas numa cadeia negocial, não há que se impedir o direito ao crédito, sob a assertiva fiscalista de que o emitente das notas fiscais é inidôneo (art. 23 da LC 87/96).

No plano jurisprudencial, pode-se afirmar, sem qualquer vacilo, que o Superior Tribunal de Justiça tem posição definitiva acerca do assunto, firmada em inúmeras decisões judiciais que asseguraram a contribuintes do ICMS o direito ao crédito fiscal, ainda que derivado de documento fiscal inidôneo, sempre que estes conseguiram demonstrar que a compra e venda da mercadoria foi efetivamente realizada. Refere-se, para ilustrar essa orientação do STJ, os acórdãos proferidos nos Recursos Especiais nºs 89.706, 133.325, 112.313 e no Agravo Regimental no Recurso Especial nº 290.227, transcrevendo-se-lhes as ementas:

Tributário. ICMS. Créditos resultantes de nota fiscal. Declaração superveniente da inidoneidade de quem a emitiu. Verificado que o contribuinte aproveitou credito decorrente de nota fiscal emitida por quem estava em situação irregular (ainda que só declarada posteriormente), o respectivo montante só é oponível ao fisco se demonstrado, pelos registros contábeis, que a operação de compra e venda realmente aconteceu. Hipótese, todavia, em que o lançamento fiscal foi efeito imediato da declaração, superveniente, da inidoneidade do emitente da nota fiscal, sem que a efetividade da operação de compra e venda tenha sido contestada. Recurso especial conhecido e provido. (REsp. 89.706, DJ 6.4.98, p. 77).

TRIBUTÁRIO – ICMS – ESTORNO – SANÇÃO REFLEXA: ILEGALIDADE.

1. A sanção imposta a empresa onde foi constatada inidoneidade nos documentos por via reflexa as firmas que transacionaram com a autuada.

2. Creditamento do ICM que se mantém, independentemente da origem,porque efetivamente pago.

3. Recurso especial provido. (REsp. 133.325, DJ 25.10.99, p. 72)

TRIBUTÁRIO – ICMS – CRÉDITOS RESULTANTES DE NOTA FISCAL -INIDONEIDADE DA EMPRESA EMITENTE – ENTRADA FÍSICA DA MERCADORIA -NECESSIDADE – VENDEDOR DE BOA-FÉ – INEXISTÊNCIA DE DOLO OU CULPA -PRECEDENTES.

– O vendedor ou comerciante que realizou a operação de boa-fé,acreditando na aparência da nota fiscal, e demonstrou a veracidade das transações (compra e venda), não pode ser responsabilizado por irregularidade constatada posteriormente, referente à empresa já que desconhecia a inidoneidade da mesma.- Recurso conhecido e provido. (REsp. 112.313, DJ 17.12.99, p. 343).

AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. TRIBUTÁRIO. ICMS. COMPENSAÇÃO LASTREADA EM NOTAS FISCAIS INIDÔNEAS. VENDEDOR DE BOA-FÉ. ALEGADA OFENSA AOS ARTIGOS 165 C/C O 458, II E III, 535, II, TODOS DO CPC,BEM COMO AOS ARTIGOS 136 E 150 DO CTN. NÃO-OCORRÊNCIA.

Ao tribunal toca decidir a matéria impugnada e devolvida. A função teleológica da decisão judicial é a de compor, precipuamente,litígios. Não é peça acadêmica ou doutrinária, tampouco destina-se a responder a argumentos, à guisa de quesitos, como se laudo pericial fosse. Contenta-se o sistema com a solução da controvérsia,observada a res in iudicium de ducta. Dessa forma, não foram violados os artigos 165, 458, II e III, bem como 535, II, do CPC.No tocante à alegada violação dos artigos 136 e 150 do CTN, a jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento segundo o qual "as operações realizadas com empresa posteriormente declarada inidônea pelo Fisco devem ser consideradas válidas, não se podendo penalizar a empresa adquirente que agiu de boa-fé" (REsp 176.270/MG, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ 04.06.2001).Agravo regimental improvido. (AgRg. no REsp. 290.227, DJ 6.2.2006, p. 232).

Conclui-se, destarte, que, em matéria de vedação a crédito de ICMS oriundo de nota fiscal inidônea, o direito pretoriano construído pelo Superior Tribunal de Justiça prestigia a boa-fé do contribuinte adquirente de mercadoria, reconhecendo-lhe o direito ao crédito fiscal, desde que este consiga provar, via escrituração contábil, a efetiva realização da compra.

Walmir Luiz Becker*
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